O
AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA
Parte
1
Por
Marco Moretti
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Cartaz original de "...E o Vento levou" - Fonte: Wikipedia |
Para os amantes do cinema,
1939 é um ano tão icônico quanto 1789 ou 1917 é para os historiadores e
teóricos sociais. Naquele ano, o sistema de estúdios da velha Hollywood já
havia se restabelecido do débâcle da Grande Depressão do início da década e
operava a todo vapor, inundando as salas de cinema com cerca de 40 novos filmes
a cada mês. No mesmo ano que assistiu à eclosão da Segunda Guerra Mundial,
Hollywood atingiu o ápice da qualidade técnica e artística com clássicos ainda hoje
cultuados como “O Morro dos ventos uivantes” (a suntuosa adaptação do livro de Emily
Brönte dirigida por William Wyler e estrelada por Laurence Olivier), o
esfuziante “O Mágico de Oz” (que lançou ao estrelato Judy Garland), o icônico
western de John Ford “No Tempo das diligências” (que tornou o jovem John Wayne
um nome popular nas marquises), a maliciosa comédia anticomunista de Ernst
Lubitsch, “Ninotchka” (talvez o melhor trabalho de Greta Garbo), a sentimental
sátira política de Frank Capra “A Mulher faz o homem” (em que James Stewart põe
a nu a corrupção endêmica dentro do Congresso americano), a deliciosa aventura
passada na Legião Estrangeira de “Beau Geste” (com Gary Cooper) e a melhor
versão de “O Corcunda de Notre-Dame” para as telas (com a magistral
interpretação de Charles Laughton no papel de Quasímodo). Nenhuma produção
daquele ano, porém, foi mais assistida, comentada, premiada, elogiada e
execrada do que o clássico dos clássicos, “...E o Vento Levou”. Quando se fala
nesse filme, os números são superlativos. Nove Oscars – um especial (recorde
que só seria batido vinte anos depois, com “Ben-Hur”) -, mais de 400 milhões de
renda na época da estreia, o que o tornou, durante décadas, o campeão supremo
de bilheteria do cinema, até ser desbancado, em 1965, por “A Noviça Rebelde”
(segundo estimativas recentes, aliás, feitas as correções da inflação e da
devalorização do dólar, ele continua firme como o número 2 entre os maiores
sucessos da história, com 1 bilhão e 854 milhões de dólares arrecadados, à
frente de pesos-pesados mais recentes, como “Star Wars: O Despertar da Força” e
“Vingadores: Guerra Infinita” e perdendo apenas para “Avatar”). No entanto,
todos os excessos desse filme, a sua grandiloquência turbulenta e barulhenta, a
sua desbragada sentimentalidade de dramalhão épico, todas as eventuais
qualidades e defeitos que possui, não podem ser atribuídos a nenhum diretor,
nem a nenhum estúdio, mas a um único homem: o caprichoso, difícil e
insuportavelmente meticuloso produtor David O. Selznick.
A sua própria trajetória na Meca do cinema seria digna de
um melodrama Hollywoodiano das antigas, com toda a carga de emoções inflamadas,
ódios reprimidos, juramentos de vingança, reviravoltas inesperadas e lances
sujos. Uma convencional história de fracassos e sucessos tão ao gosto da época,
e que começa efetivamente com o pai de David, Lewis, um judeu russo que no
início do século passado emigrou de Kiev, onde ganhava a vida vendendo jóias, para
os Estados Unidos, onde rapidamente ascendeu ao Olimpo da indústria
cinematográfica como distribuidor de filmes independentes. Imensamente rico,
criou os filhos como se fossem os herdeiros de um império, dando-lhes uma
polpuda mesada semanal de 750 dólares (uma extravagância para os padrões dos
anos 1920) com a única condição de que torrassem tudo, e não guardassem um
único centavo. “Deem ou joguem fora”, dizia para eles, com a atitude perdulária
típica de um novo-rico. Viciado em jogatinas, imprudente e falastrão, Lewis J.
Selznick colecionava desafetos com a mesma facilidade com que gastava os seus
milhões e fatalmente encontrou o destino previsível dessa combinação
potencialmente explosiva. Em 1923, foi levado à falência e à completa ruína por
uma mera dívida de 3 mil dólares pelos mesmos poderosos dos estúdios que um dia
o tinham ajudado a erguer a sua fortuna.
Os
três filhos reagiram ao desastre financeiro familiar de maneiras diversas. Howard,
o mais novo, menos talentoso e introspectivo, limitou-se a abrir uma loja de
flores em Los Angeles, negócio que, previsivelmente, não prosperou e fez dele
um fracassado para o resto da vida. Myron, o mais velho, beberrão inveterado,
jurou vingança contra os chefões de Hollywood pelo que tinham feito ao pai e se
tornou um dos mais agressivos e inescrupulosos advogados e empresários de
estrelas como Gary Cooper, Henry Fonda e Laurence Olivier, sempre decidido a
extorquir até o último centavo das grandes companhias produtoras. Como Myron,
David, o irmão do meio, também nutria um incontido desejo de vingança contra o
sistema de estúdios, mas decidiu que o mais apropriado seria concretizá-lo
aliando-se, e não confrontando o inimigo. Assim que deixou a Universidade
Colúmbia, tratou de trilhar os passos do pai e galgou os degraus da ascensão
profissional com insistência e paciente resignação. Pretendia vencer em
Hollywood a todo custo, mas não assediando-a pelo lado de fora, como Myron, e
sim inserindo-se nas traiçoeiras engrenagens do jogo de poder nas entranhas do Leviatã
para subjugá-lo por dentro.
O cenário com que David Selznick deparou na Meca do
cinema no final de 1926, contudo, era bem diferente daquele em que o seu pai
havia prosperado. O sistema de estúdios estava então firmemente estabelecido, a
produção, centralizada nas mãos de poucos, era estruturada em bases
industriais, com linhas de produção montadas sobre uma rígida hierarquia de
cargos e funções, um complexo empresarial que trabalhava a um ritmo frenético e
empregava dezenas de profissionais. Não havia mais lugar para improvisos,
portanto, nem para aventureiros e amadores. Foi nessa máquina intrincada que o
jovem Selznick, na ocasião com apenas 25 anos, conseguiu a primeira
oportunidade, como leitor do departamento de histórias da Metro-Goldwyn-Mayer,
a maior e mais prestigiosa de todas as companhias da época, comandada com mão
de ferro pelo temperamental chefão do estúdio, Louis B. Mayer.
Mayer,
a propósito, se opôs o quanto pode à contratação de Selznick, pois nunca
esqueceu a rivalidade que manteve durante anos com o pai dele, mas foi voto
vencido quando Nick Schenck, executivo da Loew, a empresa que detinha o
controle financeiro da MGM, bateu o pé e insistiu em que o rapaz fosse
contratado. David não decepcionou. Muito pelo contrário, mostrou uma
extraordinária capacidade administrativa e criativa, dedicando-se aos mínimos
detalhes nas produções do estúdio. Logo, passou a supervisionar todo o
departamento de roteiristas e chegou a sugerir que a Metro adquirisse uma cópia
do clássico do cinema soviético “O Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein.
“Creio que seria vantajoso para a organização examiná-lo, da mesma forma que um
grupo de artistas examinaria e estudaria um Rubens ou um Rafael”, explicou ele
na ocasião. Carreirista inveterado, não perdeu tempo para marcar território.
Rapidamente, aproximou-se da filha caçula de Mayer, Irene, e tanto insistiu
(“Não posso esperar mais”, teria dito ele a L.B., “o senhor é homem. Não vê que
estou passando por um inferno?”) que se casou com ela em 1930, apesar das
objeções do sogro. “Ele vai ser um vadio, exatamente como o pai”, o velho Louis
preveniu inutilmente a filha. O casamento dos dois filhos dos produtores rivais
foi motivo de piadas por toda Hollywood, algumas de mau gosto. “Alguém tinha
que ter estômago de trepar com ela”, disseram maldosamente alguns, enquanto
outros preferiram fazer um trocadilho impronunciável em português com o título
original do livro de Ernest Hemingway “O Sol também se levanta” (“The Sun also
rises”), afirmando que, no caso de Selznick, “the son-in-law also rises”
(“son-in-law” significa genro, e “son” tem o som igual ao de “sun”, resultando daí
“o genro também se levanta”, sugerindo que Selznick havia ascendido na carreira
por conta de nepotismo). Mais do que Louis B. Mayer ou Schenck, entretanto, o
principal rival e modelo de Selznick na MGM era o lendário chefe de produção
Irving G. Thalberg, hoje o nome de um prêmio conferido anualmente pela Academia
de Hollywood aos produtores que mais se destacam por seus trabalhos.
Thalberg foi um gênio precoce, um workaholic com a saúde
debilitada por problemas cardíacos, que o levariam para o túmulo cedo demais,
aos 37 anos, em 1936. Foi ele o principal responsável por edificar o sistema de
unidade de produção que passou a vigorar na Metro pouco antes da chegada de
Selznick. Segundo esse modelo de gestão, todas as produções do estúdio, da pré
à pós-produção, tinham de passar pelo seu crivo artístico e administrativo, com
isso enfraquecendo o poder decisório dos diretores, convertendo-os em meros
artesãos sem autonomia para palpitarem nos filmes que realizavam. Thalberg
contava a seu favor com um profundo conhecimento de obras literárias, sobretudo
as clássicas, e um gosto apurado para o que realmente possuía qualidade. Sob a
sua supervisão, foram realizadas grandes obras-primas de prestígio, como “Terra
dos Deuses”, baseado no romance da Prêmio Nobel americana Pearl S. Buck, “Romeu
e Julieta”, a versão da peça de Shakespeare estrelada por sua esposa, a atriz
Norma Shearer, e “O Grande Motim”, o épico náutico estrelado por Charles
Laughton e Clark Gable e premiado com o Oscar de Melhor Filme de 1935, isso sem
contar “Uma Noite na ópera”, a melhor das comédias dos Irmãos Marx. Rapidamente,
tornou-se o “menino-prodígio” mais talentoso de Hollywood. Apenas os seus pares
Hal B. Wallis, da Warner Bros., e Darryl F. Zanuck, da 20th Century Fox, podiam
se equiparar a ele, embora carecessem de sua aguda sensibilidade. Sem falsa
modéstia, costumava dizer que, mais do que qualquer outra pessoa, ele tinha o
dedo no pulso da América e sabia o que o público americano iria ou não gostar
de ver. Foi em sua figura e em sua personalidade que o grande escritor F. Scott
Fitzgerald se baseou para escrever o seu derradeiro e inacabado romance, “O
Último Magnata” (filmado nos anos 1970 por Elia Kazan, com Robert DeNiro no
papel principal). Apesar de sua meteórica carreira e da merecida fama de gênio,
Thalberg não era infalível. Foi ele o culpado por obras malditas como o cult de
terror e de mau gosto “Monstros”, de Tod Browning. Também errou feio quando
profetizou, após assistir ao primeiro filme sonoro, “O Cantor de Jazz”, em
1927, que os filmes falados seriam apenas uma moda passageira. Apesar dos
eventuais equívocos, demonstrava muito mais visão do que o seu parceiro, L. B. Mayer,
que chegou a se recusar a distribuir os desenhos de Mickey Mouse pela simples
razão de que muitas mulheres grávidas costumavam assistir aos filmes da Metro e,
em sua singela opinião, elas podiam passar mal ao ver o camundongo de Disney porque “mulheres costumam ter medo de rato”.
Selznick espelhou-se no estilo vigoroso e determinado de
Thalberg, no controle obsessivo que o jovem executivo exercia sobre as
produções sob a sua responsabilidade, em seu bom gosto artístico e na
inesgotável capacidade de trabalhar com afinco até que tudo saísse como
pretendia. Foi nessa época que David acrescentou o “O.” ao nome, para dar-lhe
mais eufonia e um ar de autoridade e, de certa maneira, torná-lo parecido com o
“G.” de seu mentor, conquanto a letra “O” não significasse absolutamente nada (as
más línguas afirmavam que se tratava na verdade um zero, sugerindo que ele era
um zero à esquerda). Também foi nesse período que ele adquiriu dois hábitos que
não abandonaria até o fim da vida. A mania de enviar infindáveis memorandos
para Deus e o mundo, inclusive para os seus superiores, entupindo as caixas de
entrada com bilhetes em folhas amarelas com observações, palpites e reprimendas
a respeito de todos os aspectos de uma produção que achava que mereciam ser
corrigidos, dos roteiros e figurinos até penteados e roupas de baixo (pode-se
especular o que ele não faria hoje em dia com os e-mails). Tornou-se tão
obcecado com a prática que chegava a mandar memorandos falando até mesmo dos próprios
memorandos. Para dar conta do excesso de trabalho, das exigências que se impôs
para atingir um grau de excelência em tudo o que punha a mão, Selznick se
tornou em certo momento viciado em benzedrina, um estimulante químico da
família das metanfetaminas que o deixava pilhado, permitindo que continuasse a
trabalhar sem parar madrugada adentro, dia após dia, e que em pouco tempo ele
passou a tomar em doses cavalares, com a mesma naturalidade com que bebia uísque.
Rapidamente promovido a supervisor de produção e decidido
a impressionar os chefões da Metro, Selznick associou-se a um dedicado
realizador que havia sido assistente do lendário D.W. Griffith, W. S. Van Dyke,
e juntos realizaram projetos cada vez mais ambiciosos e extravagantes, como era
de seu feitio. Inevitavelmente, a sua impulsividade acabaria por conduzi-lo a
uma rota de colisão direta com Thalberg. O pomo da discórdia foi um impasse
surgido durante as filmagens de um filme semidocumental intitulado “Deus
Branco”, dirigido por um dos maiores documentaristas da história, o inglês Robert
Flaherty, Selznick viu-se tolhido em suas pretensões de tocar a produção como bem
entendia, deixando em segundo plano o caráter documental e acentuando a ação e
a aventura da narrativa, e preferiu deixar a MGM em novembro de 1927.
Aqueles eram os primórdios do cinema sonoro, e o jovem e
ambicioso produtor foi bater à porta de outro grande estúdio, a Paramount, com
a proposta de ajudar a reformular a estrutura de produção para que se adequasse
ao novo sistema. Até então, durante o período mudo, ninguém se preocupava muito
com o que os personagens diziam nas legendas, desde que os filmes contivessem
movimento e a história fosse contada visualmente. Com a sonorização, contudo, as
coisas mudaram radicalmente. Súbito, as companhias se deram conta de que os diálogos
escritos para serem lidos simplesmente soavam ridículos quando proferidos por
um ator. Os roteiros precisavam ser mais bem preparados e polidos por pessoas
que tivessem intimidade com a palavra falada, que exigia uma naturalidade e uma
fluidez próprias. Além disso, como o novo processo de gravação sonora era
substancialmente mais custoso do que antes, exigindo cuidados especiais que iam
da construção de novos estúdios à prova de som até a compra de equipamentos
sensíveis e caros, o planejamento meticuloso de cada etapa da produção
tornou-se uma questão logística complexa e indispensável. Com o espírito afiado
e crítico e a sua capacidade inigualável de articular todos os aspectos
envolvidos na realização de um filme, Selznick era a pessoa certa na hora certa
para implantar essas mudanças.
Sob as asas liberais de Ben Schulberg, o equivalente
menos autocrático de Thalberg na nova casa, ele aproveitou os bons ventos para
expandir os seus horizontes criativos. Como assistente de Schulberg para o
departamento de roteiristas, Selznick atraiu para a Paramount uma safra de
brilhantes nomes que vinham se destacando no jornalismo e nos palcos de Nova
York, reforçando um elenco que já incluía Ben Hecht, Charles MacArthur e o
futuro diretor Nunnaly Johnson, além de muitos outros. Entre os egressos escolhidos
a dedo pelo novo produtor, estavam Joseph Mankiewicz, que estava destinado a se
tornar um dos maiores realizadores do cinema, e um diretor experiente do teatro
chamado George Cukor, que, além da semelhança física, compartilhava com
Selznick gostos estéticos similares, elo que seria reforçado nos anos
seguintes. Com a liberdade que respirava no novo estúdio, Selznick passou a
produzir uma série de dramas românticos passados em cenários exóticos, como
“Marrocos” e “O Expresso de Shangai”, ambos dirigidos pelo prestigiado cineasta
alemão Josef von Sternberg e estrelados por sua musa, Marlene Dietrich. Foi
ainda mais ousado ao contratar o seu ídolo do cinema soviético, Sergei
Eisenstein, para adaptar e filmar o clássico romance de fundo social do
escritor Theodore Dreiser, “Uma Tragédia americana”. O roteiro preparado por
Eisenstein revelou-se infilmável, repleto de sobreposições de imagens e
monólogos interiores, embora fosse, nas palavras de Selznick, “o mais comovente”
que leu na vida. No final das contas, o projeto foi levado às telas, sem grande
inspiração, por Sternberg, em 1931 (a versão cinematográfica definitiva do
romance, contudo, só seria realizada em 1951, dirigida por George Stevens e
estrelada por Montgomery Clift e Elizabeth Taylor, intitulada “Um Lugar ao
sol”).
Foi nesses idos que a Grande Depressão, que já grassava
nos Estados Unidos e atingia o mundo inteiro desde 1929, chegou tardiamente a
Hollywood. Num primeiro momento, a indústria do cinema americano não sentiu os
efeitos da recessão econômica, e na verdade se beneficiou dela, na medida em
que vendia sonhos e escapismo a preço barato para as massas de desempregados
que formavam filas nas grandes cidades para conseguir um prato de sopa. Para se
ter uma ideia do estrago, em 1930, quando a novidade do cinema sonoro ainda
atraía as multidões, o lucro somado dos estúdios de grande porte havia
ultrapassado os 50 milhões de dólares. Em 1931, porém, a situação se inverteu e
o faturamento despencou para 6,5 milhões, situação que iria se tornar ainda
mais crítica nos anos seguintes. De todos os estúdios, a Paramount foi a que
sentiu de maneira mais aguda a crise. Para sobreviver aos tempos de vacas
magras, a companhia cortou projetos e decidiu encolher substancialmente os
salários de seus executivos. Selznick se recusou a aceitar as novas condições
salariais e pediu as contas em julho de 1931.
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O produtor David O. Selznick em foto da década de 1930 - Fonte: Wikipedia |
Por
um tempo, Selznick flertou com a ideia de criar unidades de produção
independentes dos grandes estúdios, no qual produtores e diretores se associariam
para escalar roteiristas, estrelas e técnicos de sua escolha para os projetos, sem
a interferência dos todo-poderosos chefes de produção, a melhor maneira,
segundo as suas próprias palavras, “de sair do poço de filmes ruins e caros em
que estamos afundados”. Mas aquela época vivia o auge do sistema de estúdios, e
não havia espaço para esse tipo de proposta. Na verdade, esse modelo só seria
adotado nos estertores dessa era, a partir dos anos 1960, e, essencialmente,
continua em vigor até hoje. Frustrado em seus intentos, Selznick reconsiderou
então a proposta de David Sarnoff, presidente da RCA, pioneira do setor de
telecomunicações, que tinha lhe oferecido o cargo de vice-presidente
encarregado da produção de dois estúdios hollywoodianos subsidiários da
empresa, a RKO-Rádio e a RKO-Pathé, este último pertencente a Joseph Kennedy, o
pai do futuro presidente americano, a um salário de 2,5 mil dólares semanais.
Ironicamente, a sua função na nova companhia, onde ingressou no outono de 1931,
foi justamente promover aquilo a que havia se recusado a aceitar na Paramount,
uma reestruturação contábil e administrativa profunda do setor de produção na
tentativa de salvá-lo financeiramente de prejuízos que remontavam a 5 milhões
de dólares. Com o auxílio de dois assistentes executivos, Pandro S. Berman e
Merian C. Cooper, David O. Selznick, autopromovido a produtor-executivo, efetuou
profundas mudanças, começando pela demissão de um sem-número de funcionários,
inclusive atores de segundo escalão, a fusão da RKO-Rádio e a Pathé em um só
estúdio, renomeado como RKO Radio Pictures, e a reavaliação de projetos que
estavam em andamento. Entre os longas-metragens que seguiram à frente sob a sua
chancela figuram hoje clássicos como “Hollywood” e “Vítimas do Divórcio” (que
marcou a estreia cinematográfica de Katharine Hepburn, a atriz mais oscarizada
de todos os tempos), ambos dirigidos por seu amigo George Cukor, que ele trouxe
consigo da Paramount. Mas o projeto mais grandioso e ambicioso que Selznick
levou a cabo em sua curta embora marcante passagem pela RKO foi dirigido por
Cooper e seu colega Ernest B. Schoedsack e envolvia a história mirabolante e
fascinante da paixão de um gorila gigantesco por uma jovem, o “King Kong”
original, lançado em março de 1933 (leia
o making of desse filme aqui em meu blog). O determinado produtor, agora
uma lenda-viva em Hollwyood, contudo, não permaneceu tempo o suficiente na
empresa para prestigiar a estreia do filme. Diante da notícia de que Irving G.
Thalberg havia adoecido gravemente e estava afastado do comando da MGM por
tempo indeterminado, Selznick viu nisso uma oportunidade para galgar mais um
degrau importante em sua ascensão profissional e, em fevereiro de 1933, aceitou
sem hesitar um convite formal de seu sogro para regressar para o estúdio do
leão, agora com plenos poderes.
Assim que pôs os pés de novo na Metro, e com a sua
própria unidade de produção nas mãos, tratou de dar início a um projeto de
prestígio, “Jantar às Oito”, que pretendia transformar num filme com elenco
“all-star”, recheado de estrelas e dirigido por seu protegido Cukor, aproveitando
o embalo de “O Grande Hotel”, um filme “estiloso”, à moda dos anos 1930, uma
comédia sofisticada levemente espirituosa, marca registrada da MGM, estrelada
por Greta Garbo, John Barrymore e muitos outros, e que havia acabado de ganhar
o Oscar de Melhor Filme de 1932. Ele queria provar, a todo custo, que podia se
ombrear com o chefe de produção afastado e até superá-lo em seu terreno. Era
estimulado a isso pelo próprio Mayer, que manobrava secretamente para
enfraquecer o poderio de Thalberg dentro da empresa enquanto ele estivesse
ausente. Quando o produtor regressou ao estúdio, em meados de 1934, foi forçado
a dividir o trono com Selznick e outro nome em ascensão, Hunt Stromberg. No
espaço de um ano, esse triunvirato foi responsável por consolidar o estilo da
companhia, com uma safra de filmes que incluíram “David Copperfield”, adaptação
do clássico romance de Charles Dickens, “A Viúva alegre”, opereta dirigida por
Ernst Lubitsch, “Anna Karenina”, com Greta Garbo, e “A Queda da Bastilha”, estrelado
por Ronald Colman, também baseado em Dickens. Muitos desses longas-metragens
eram adaptações de livros que o pai de Selznick costumava ler para ele e os irmãos
antes de dormirem, quando eram crianças.
Apesar
do inegável êxito de seus projetos e da contribuição decisiva para elevar o nível
das produções, David O. Selznick ainda não se sentia satisfeito. Havia
desfrutado de tanta liberdade criativa na Paramount e na RKO que agora se
ressentia do controle rígido que a Metro (e, por extensão, o sogro) exercia
sobre ele, sobretudo no que dizia respeito à relação custo-benefício. Tampouco
via com bons olhos o tom cada vez mais conservador dos longas-metragens que estavam
sendo realizados ali. Ansiava em ser dono do próprio nariz, livre da pressão
dos donos do dinheiro em Nova York e, se a recessão não havia permitido
concretizar esse desejo anos antes, em 1935 a retomada do crescimento econômico
do país havia aberto uma avenida de novas oportunidades. Foi assim que, novamente,
ele pediu as contas da MGM em julho daquele ano, mas dessa vez para dar o grito
de independência e criar a própria companhia produtora.
A Selznick International Pictures (SIP) foi fundada ainda
em 1935 com o aporte de 400 mil dólares, que David obteve em parte como
empréstimo do irmão, Myron, de outros tantos milhares vindos de financiadores
menores, e de 2,4 milhões, a maior parte do capital, de um financista
nova-iorquino chamado Jock Whitney, que se tornou o seu sócio no
empreendimento. Aos 33 anos, Selznick acumulava os cargos de presidente e
produtor-executivo de sua própria produtora independente. Ou quase, pois ainda
precisava dos grandes estúdios para a distribuição e a exibição (naquela época,
as companhias de Hollywood detinham o controle total da realização e comercialização
dos filmes, situação que só mudaria depois da Segunda Guerra, com a entrada em
vigor da Lei Antitruste, que quebrou a espinha dorsal desse sistema
definitivamente).
No
início do ano seguinte, a nova empresa operava a todo vapor, produzindo um
longa de cada vez, num método quase artesanal, mas que refletia bem a
meticulosidade e os gostos extravagantes de seu proprietário. Tratava-se de aventuras
românticas açucaradas, pueris, inverossímeis e moralistas, passadas em
ambientes exóticos, como “O Jardim de Alá”, ou melodramas de luta e superação
melosos, como a primeira versão de “Nasce uma estrela”, estrelados por astros
do quilate de Marlene Dietrich, Charles Boyer, Janet Gaynor e Fredric March e
diretores como William A. Wellman, alguns filmados em esfuziante techcnicolor
nos fundos dos antigos estúdios RKO-Pathé, que agora eram de sua propriedade,
não muito longe da sede da MGM, em Culver City.
Foi em meados de 1936 que
a sua secretária particular, Katherine Brown, jogou em seu colo um romance que
estava no primeiro lugar dos mais vendidos em todas as listas dos Estados
Unidos e que lhe havia sido oferecido por uma agente da MacMillan, uma das mais
prestigiosas editoras da época. A Srta. Brown, encarregada de garimpar
materiais para novos filmes, havia lido de uma só tacada o livro, um cartapácio
de mais de mil páginas escrito por uma autora iniciante do sul chamada Margaret
Mitchell, e ficou absolutamente encantada com o seu apelo ao mesmo tempo melodramático
e grandiloquente, com pretensões a ser o “Guerra e Paz” americano, e imaginou
que ele se adequaria como uma luva ao paladar cinematográfico do patrão, que nunca
escondeu uma queda por histórias de amor não realizadas, porque impossíveis,
como “Anna Karenina”, “O Jardim de Alá”, “Nasce uma Estrela” e, por que não?, até
mesmo “King Kong”. Pois “...E o Vento Levou” era exatamente isso, um épico
romântico que tinha como pano de fundo a Guerra de Secessão, vista sob a ótica da
determinada Scarlett O’Hara, uma heroína caprichosa e inflexível em suas
convicções.
Continua na próxima
semana