O MAIS AMERICANO DOS SUPER-HERÓIS
Por Marco Moretti
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O Capitão América no traço de Jack Kirby - Fonte: Wikipedia |
Em meados de 1941, o mundo estava
mergulhado nos horrores da Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos, seguindo
sua política isolacionista, viam com apreensão crescente o avanço das forças
nazi-fascistas na Europa. Em meio a esse clima, os quadrinhos entraram no
esforço de guerra bem antes do ataque japonês a Pearl Harbor lançar o país no
conflito. A Timely, a editora que anos depois se tornaria a Marvel, contribuiu
com histórias em que seus dois principais super-heróis na época, o Príncipe
Namor e o Tocha Humana original (não confundam com o Johnny Storm, do Quarteto
Fantástico, uma espécie de reboot criado nos anos 1960, no limiar da chamada
Era Marvel dos quadrinhos, e hoje muito mais popular do que o seu antecessor),
combatiam as forças do Eixo.
Contudo, isso não era o suficiente para
o editor-chefe Martin Goodman. Imbuído de patriotismo e achando que a guerra
ajudaria a alavancar as vendas de seus gibis, ele encomendou a dois de seus
criadores mais ativos, Joe Simon e Jack Kirby, a criação de um herói que
personificasse o espírito americano e fosse um combatente da liberdade.
No esboço do personagem que Simon e
Kirby apresentaram ao editor, os criadores escreveram que ele “devia ter um
parceiro ou então falaria sozinho o tempo todo”. Vestido com um uniforme que
trazia estampada a própria bandeira americana e empunhando um escudo triangular
também com as cores nacionais azul, vermelha e branca, o herói não poderia ter
outro nome a não ser Capitão América.
“Basicamente”, disse Joe Simon anos
depois, “estávamos procurando por um vilão antes de tudo, e Hitler era esse
vilão”. Foi assim que a primeira edição da revista Captain America Comics, com o herói dando um sopapo no führer em pessoa na
capa, chegou às bancas americanas em março de 1941. Entre as inovações do
título, estavam a ação ininterrupta com generosas doses de violência e o uso de
recursos gráficos inéditos, como a página espelhada. O sucesso foi estrondoso e
a edição chegou perto da marca de um milhão de exemplares, um número nada
desprezível. A título de comparação, considere-se que na época a prestigiosa
revista semanal Time rodava 700 mil
exemplares.
Ao contrário dos super-heróis que o
antecederam, Superman e Batman à frente, o Capitão América não tinha nascido
com superpoderes nem dispunha de artefatos e dispositivos que o ajudassem na
luta contra o mal. Em vez disso, ele era originalmente um rapaz franzino
chamado Steve Rogers que, depois de tomar uma dose de um “estranho líquido
fervilhante” (só mais tarde seria batizado de “soro do supersoldado”), se
transformava em um homem dotado de força e destreza incomuns.
O que tornava o personagem atraente
para os jovens leitores é que ele era essencialmente alguém como eles,
vulnerável, mas imbuído de uma bravura sem igual. Tão logo surgiu, o Capitão
América foi recrutado pelo governo para lutar no front de guerra e não demorou
a ganhar seu anunciado parceiro, como mandava o figurino da época: Bucky
Barnes, a “mascote do regimento” do Campo Leigh. Juntos, os dois enfrentaram as
forças do Eixo, que ganharam nos vilões Caveira Vermelha e Barão Zemo suas
faces mais repulsivas e atemorizantes.
Dos dois, o Caveira sem dúvida era a
quintessência de tudo o que o nazismo representava, o símbolo acabado da morte
e do derramamento de sangue, do ódio racial. Ajustava-se à perfeição ao
pensamento maniqueísta daquele período, e encontrava no Capitão a sua antítese
como símbolo dos ideais da democracia e da liberdade, da qual o herói passou a
ser uma espécie de guardião (não por acaso, ele também é conhecido pelos
leitores como o Sentinela da Liberdade). Como peças de propaganda política,
ambos serviam muito bem ao propósito de inspirar nos garotos que devoravam as
suas aventuras a inspiração que a América precisava para combater as forças
nazi-fascistas. Nesse sentido, é interessante observar que Steve Rogers, loiro
e de olhos claros, estava mais próximo do “übermensch”, o “além do homem” ou
“super-homem” que pretendia ser o protótipo da raça ariana dos nazistas, do que
qualquer soldado alemão. Um detalhe nada desprezível, se considerarmos que os
seus criadores eram dois judeus de boa cepa.
Aliás, boa parte da personalidade do Capitão América e do estilo de suas
aventuras, recheadas de ação da primeira à última página, emanava do jeito
impulsivo de ser de seu co-criador, o brilhante Jack Kirby (1917-1994). Judeu
nova-iorquino criado nos bairros pobres da cidade, Jacob Kurtzberg cresceu
cercado de violência por todos os lados e a forma que encontrou para lidar com ela
foi expressá-la por intermédio dos desenhos. A sua arte tem uma distinta
característica de vibrante ação, em que cada painel parece explodir da página
impressa. Sob o seu traço, os personagens, frequentemente troncudos e
exageradamente musculosos, quase nunca ficam parados. Estão sempre em
movimento, quando não enfrentando oponentes tão ou mais agressivos quanto eles.
Esse estilo de fazer quadrinhos não se tornou imediatamente evidente nos idos
da década de 1940, mas viria a se tornar a sua marca registrada 20 anos depois,
quando, ao lado de Stan Lee, forjou o Universo Marvel.
Quando a guerra terminou, o Capitão
parecia ter perdido o propósito e pouco depois saiu de circulação. Voltou, por
um breve período, nos anos 1950. Porém, foi somente na década de 1960 que ele
fez o seu retorno triunfal ao mundo dos quadrinhos, quando o mesmo Kirby que o
criou e seu companheiro Stan Lee começavam a definir as bases daquilo que se
tornaria o Universo Marvel.
Encontrado congelado em um iceberg pela
equipe dos Vingadores, o personagem foi tratado a princípio como uma relíquia
da Segunda Guerra, mas encontrou outro papel para si ao defender o mundo livre em
meio à Guerra Fria.
Durante a sua trajetória, o Capitão América mudou muito pouco
visualmente. O escudo, que originalmente era em formato de diamante, tornou-se
redondo como conhecemos hoje, e é só. As três cores da bandeira americana (e
que não são exclusividade dele, pelo menos o vermelho e o azul também estão
presentes em outros super-heróis, como o Super-Homem e o Homem-Aranha), como
não poderia deixar de ser, prosseguiram intocadas. Já a personalidade do herói,
o seu pathos, evoluiu de um simples
inimigo das forças nazi-fascistas e peça de propaganda para se tornar uma
espécie de voz da consciência de seu país. Se em certas épocas espelhava a
imagem que os americanos gostavam de enxergar a si mesmos, altruístas,
defensores de valores como liberdade, justiça e igualdade de oportunidades, em
outros períodos se tornou uma versão crítica desses mesmos ideais.
Não deixa de ser sintomático o fato de que ele passou anos congelado após
o fim da Segunda Guerra Mundial, e tenha sido revivido justamente quando a
tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética atingiu o ponto crítico, às
portas da Crise dos Mísseis de Cuba e da Guerra do Vietnã. Foi justamente no
começo dos anos 1970, quando o conflito estava numa fase aguda, que o Capitão
América passou por uma profunda crise de identidade que ajudou a redefini-lo
para a nova geração de jovens que então emergia das manifestações
antibelicistas.
Nessa época, a melhor fase de sua carreira, o herói parece ter
incorporado um pouco do espírito hippie e passou a atravessar o país no selim
de uma motocicleta, encarando a nova realidade de seu país, mergulhado em
conflitos raciais e pacifistas, envolvido com a liberação dos costumes e o
consumo aberto de drogas, mergulhando na efervescência cultural que ia do rock
de Janis Joplin e Jimi Hendrix à pop-art de Andy Warhol. Curiosamente, a
motocicleta que Peter Fonda usava no clássico “Sem Destino” (Easy Rider), de
1969, o filme que revolucionou o moderno cinema americano, tinha o nome de...
Capitão América.
Logo, o personagem acharia um novo parceiro, agora na figura do Falcão,
um herói negro, muito apropriado ao clima de contracultura que o país
atravessava entre os anos 1960 e 1970. Refletindo a crise de valores por que
passava os EUA, o herói chegou a abandonar por um breve período o próprio nome
de Capitão América e o traje bandeiroso para adotar a persona de Nômade. Os questionamentos
políticos que fazia a si mesmo nessa época, em longos monólogos entremeados de
críticas ao próprio país e à noção de patriotismo, e em que lamentava a
ausência de seu antigo companheiro Bucky e o seu isolamento em um país cuja
realidade não mais compreendia, estão entre os mais profundos que os quadrinhos
já produziram.
Mais que um mero super-herói patriótico, o Capitão incorporou em si o
próprio espírito da América e, nas diversas fases por que passou, espelhou os
sonhos, temores e inseguranças do povo americano.
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O Caveira Vermelha, arqui-inimigo do Capitão América Fonte: Wikipedia |
01 de fevereiro de 2015
Texto originalmente publicado na revista Wizard #39